Amigos na alegria e na tristeza

Segundo o Jornal O Dia, em publicação do início deste ano, a população de moradores de rua da cidade do Rio de Janeiro é maior que o número de habitantes de 3.187 dos 5.570 municípios brasileiros. A Secretaria municipal de Assistência Social e Direitos Humanos informou, na matéria, que 14.279 pessoas vivem nas ruas da capital, segundo levantamento feito em 2016. Os números indicam, comparando-se com o censo realizado em 2013, que a população de rua quase triplicou em três anos. Esses dados mostram, minimamente, como as políticas públicas voltadas para esses excluídos da sociedade, também chamados de “cidadãos invisíveis”, vai mal das pernas. Muito mal, diga-se de passagem.

A imagem que ilustra esta postagem foi feita por mim, com o auxílio do meu filho primogênito, neste final de semana. O flagrante conseguimos numa praça muito conhecida, localizada na zona sul da nossa Cidade “já nem tão” Maravilhosa. Chama a atenção algo que tenho reparado com uma constância cada vez maior, que é justamente a presença de cães com essas pessoas. Os animais não estão ali por mero acaso, mas sim os acompanhando e sendo tratados por esses moradores de rua. Na grande maioria das vezes, em minhas observações não vejo que os animais se encontram em estado de inanição e/ou com doenças aparentes, denotando que recebem cuidados e atenção de gente, pasmem, que vive em estado de grande vulnerabilidade. Mal têm recursos para si mesmos, mas procuram tratar com carinho o seu amigo, que está nas calçadas e praças da vida passando as mesmas dificuldades nessa pobreza extrema, em momentos alegres ou tristes, com goteiras das marquises sobre as cabeças ou enfrentando a friagem que chega sem piedade.

É impressionante, não? Esses cães representam para grande parte dessas pessoas, senão a totalidade, um elo poderoso entre elas e o que lhes sobrou de humanidade. Quebrar essa ligação representaria despedaçar a esperança que ainda resta naquela alma que vive nas ruas.

Quando eu ainda dirigia o Centro de Controle de Zoonoses, quantas e quantas vezes recebi solicitações de administradores regionais para que cães fossem “retirados” desses moradores de rua, com a clara finalidade de deixar a foto dos turistas mais agradável aos olhos, mais asséptica. Litros de saliva gastei, principalmente para explicar que esse ato seria criminoso caso o tutor não fosse direcionado para algum abrigo (por livre e espontânea vontade, decerto) e consentisse com a remoção do seu animal de estimação por parte da municipalidade. Atendemos também, à época, várias “denúncias” desses administradores sobre suposta agressividade de cães de moradores de rua, e, chegando ao local, algo totalmente diverso fora constatado. Não era fácil convencer alguns gestores, muitos deles políticos ou indicados por esses. Como sabemos, essa turma vive num mundo bem diferente do nosso.

Esta cadelinha simpática e muito mansa é a Lobita. Ela vive no Centro da Cidade do Rio de Janeiro com os tutores, um casal de moradores de rua. Segundo eles, Lobita foi esterilizada com a ajuda de protetores. Imagem feita em 10/04/2018, num dos canteiros centrais da Avenida Almirante Barroso.

Por não ser da área de assistência social, obviamente não sou a melhor pessoa a discorrer sobre o passo a passo do que se deve fazer com os moradores de rua, mas entendo que devem ser retirados de onde estão, têm de ser acolhidos com dignidade, alimentados, medicados se for o caso, e, o que me parece fundamental, devem ser ressocializados de alguma forma. Quanto aos animais que vivem com eles, cabe ao Poder Público cadastrar todos e providenciar-lhes esterilização e vacina anual, ao menos a antirrábica, ressaltando que muitos desses tutores levam seus animais a postos de vacinação, em épocas de campanha, quando sabem onde ficam e podem se deslocar até eles.

Sobre Mauro Blanco

Sou carioca da gema, morador da Zona Oeste, tricolor, bacharel e mestre em Medicina Veterinária pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e servidor concursado da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro. Já atuei como Oficial Temporário no Exército Brasileiro, na Companhia Municipal de Limpeza Urbana (como Subgerente na Gerência de Vetores), na Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (como Coordenador de Controle de Vetores, Coordenador de Vigilância Ambiental em Saúde e Diretor do Centro de Vigilância e Fiscalização Sanitária em Zoonoses Paulo Dacorso Filho), e na Secretaria Especial de Promoção e Defesa dos Animais, instância pertencente à Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, como Subsecretário.
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16 respostas para Amigos na alegria e na tristeza

  1. Maria Cristina Sampaio disse:

    Foto tocante, excelente matéria.
    Fico sempre impressionada quando vejo essa cena. Os moradores de rua adotam e são adotados pelos animais de rua,numa clara necessidade de afeto que todo ser vivo precisa para sobreviver a uma vida tão dura, tão inóspita. Parabéns pelo artigo!

  2. Roberto Guimarães disse:

    Excelente artigo. Poucas vezes se tem a oportunidade de ler matéria tão bem escrita e oportuna em relação a um tema difícil de ser abordado como esse. Parabéns ao Blanco pelo feito.

  3. Ivo CG disse:

    Boa percepção!

  4. CATIA MARIA FERNANDES DA SILVA disse:

    O vínculo dos moradores de rua com seus animais é certamente o último fio de esperança nessa vida que os resta. Separá-los, uma crueldade! Acolhe-los, um ato de amor e humanidade. Tudo isso muito bem descrito por Mauro Blanco Brandolini. Parabéns!!!

  5. Cristiano damasceno disse:

    UMA TRISTE REALIDADE E DESCASO TOTAL POR AQUELES QUE ESTAO A FRENTE DE NOSSA CIDADE ISSO DIGO AS AUTORIDADES QUE NOS ELEGEMOS DEIXAR TANTA GENTE E ANIMAIS PERECER DE UMA FORMA DESUMANA. PARABENS MAURO PELA MATERIA.

  6. Andréa Brêtas de Oliveira disse:

    Realmente são cenas tocantes, tão tristes, mas so mesmo tempo tão cheia de mensagens para nós seres humanos!

  7. Luis Carvalho Cordeiro Dias disse:

    Excelente matéria! Retirar os cães de rua para deixar a foto dos turistas mais asséptica, é um misto de crueldade, descaso e hipocrisia por parte do Município. Nada disso aconteceria se os governantes usassem para fins dignos as ferramentas e recursos de que dispõem.

  8. Alexandre Santos Ditta disse:

    Eis a humanidade dos “cidadãos invisíveis” e seus animais de estimação. Exemplo aos “teoricamente humanos”, insensíveis, covardes, corruptos, entre outras “qualidades”.
    A população em situação de rua vem crescendo absurdamente, fato ignorado por políticos cujo pre-requisito é ser bom de oratória, insensível, desonesto e incompetente.
    Os “humanos” em sua racionalidade questionável, não possuem capacidade mínima para perceber o quanto tem que aprender com o comportamento dos cães. São “humanos” desumanos, individualistas, irresponsáveis, que descartam seus semelhantes e estes animais sumariamente.
    Na democracia e liberdade de expressão que vivemos digo com todas as letras: A VIDA DESTAS PESSOAS E DE SEUS ANIMAIS PARA MIM VALEM MUITO MAIS DO QUE DA MAIORIA DA POPULAÇÃO. Quem quiser descordar, fique à vontade em seu direito de opinar.

  9. Eliana Tanner disse:

    Excelente matéria amigo Mauro Blanco! Você diz que não é da área de assistência social, precisa? Basta ser humano, ter a experiência de vida pública que você tem e ser este trabalhador que é. Onde quer que esteja e fazendo seja lá o quê, sempre faz com excelência. Parabéns!!!!!

  10. Sandra Regina Neto disse:

    Por vezes vejo essa cena, moradores de rua acompanhados de seus fieis amigos e anjos protetores. Quantos de nós já não vimos na frente das UPA’s ou Hospitais esses anjos de quatro patas esperando pelos seus donos. Ficam dias a fio com fome, frio muitas vezes sendo escorraçados, mas passam por cima de tudo isso e voltam para esperar seus companheiros. Em São Paulo, e se não me engano em Curitiba, na época do inverno, alguns abrigos passaram a receber também os animais, pois os donos preferiam ficar ao relento na rua do que abandoná-los, vendo isso começaram a receber também os animais, fato que fez aumentar a procura por abrigos e menos mortalidade pelo frio causticante dessas cidades.

  11. Monica Marzochi Silva disse:

    Uma triste realidade um descaso e falta de amor pelo ser humano e os animais o poder publico não tem interesse nessas causas humanitária eles estão voltados para a corrupção lamentável uma cidade maravilhosa com esse cartão postal pois estamos falando de vidas parabéns Dr Mauro pela excelente matéria.

    • Mauro Blanco disse:

      Valeu, Monica. Entendo que o Poder Público pode e deve participar muito mais nessa questão, inclusive com a vacinação e a esterilização desses animais, bem como com a prestação de orientação aos moradores de rua que deles cuidam com tanto carinho.

  12. Linda matéria! Muito tocante também..

    • Mauro Blanco disse:

      Obrigado, Gabriela, minha amiga e colega de profissão. Ajude-me a compartilhar essa realidade, que, por vezes, passa em branco para a maior parte das pessoas.

  13. Elisangela Bezerra Ribeiro disse:

    Linda matéria!! Parabéns!

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