Desafios das cidades no controle da Raiva Animal

O final no ano se aproxima, e normalmente nessa época as campanhas de vacinação antirrábica ocorrem nas cidades brasileiras. Algumas delas, tendo em vista a complexidade e a dimensão do território da municipalidade, são divididas em várias etapas visando dar conta de uma das mais importantes ações de Saúde Pública desenvolvida pelas três esferas de governo.

O Ministério da Saúde (MS) libera milhões de doses da vacina para as Secretarias de Saúde estaduais, que as repassam aos municípios de acordo com as programações que são elaboradas. A logística e a organização para que as perdas em imunobiológicos sejam insignificantes se mostram pesadas. Os Estados também repassam, dentre outros insumos, seringas e agulhas para viabilizar a empreitada. Também são eles que consolidam as informações para transmiti-las, posteriormente, ao Governo Federal e acompanham todo o processo, procurando apoiar, dentro de suas enormes limitações, no que se fizer necessário. Aqui no Estado do Rio de Janeiro não é diferente. As cidades vão se organizando como podem, algumas com grande antecedência, tendo como objetivo imunizar o maior número possível de cães e gatos. Tradicionalmente, os postos de vacinação ficam em espaços públicos, quase sempre em escolas, e servidores voluntários são treinados e participam como vacinadores.

E aí começam os desafios, que não são poucos. Antes de entrarmos em discussões mais profundas, precisamos ao menos citar o aporte insuficiente de recursos financeiros e o consequente sucateamento da máquina pública, a ausência de concursos, notadamente para suprir a falta de médicos veterinários, e a insensibilidade/incompetência de alguns gestores públicos, muitos deles indicados por políticos, que às vezes pouca ou nenhuma afinidade com ações de controle das zoonoses possuem. E por aí vai…

Mas o que me chama a atenção, tendo em vista ser algo que parece estar, ainda e por incrível que pareça, fora do radar do Poder Público é o fato de que essas campanhas são engendradas e direcionadas para os animais que possuem um tutor ou cuidador, ou seja, os que exclusivamente convivem com as pessoas em ambiente domiciliar.

Apenas um breve parêntesis: não utilizo o termo “dono” ou “proprietário”, pois dessa forma reforço a ideia de que os animais são “coisas”, como dá a entender o nosso Código Civil. Animais são seres sencientes, conforme já escrevi outrora na publicação intitulada “O abandono de pets”.

O quantitativo de cães que devem ser vacinados, segundo o Manual Técnico do Instituto Pasteur, publicado em 1999, é estimado. Utiliza-se uma percentagem de 10,0 a 16,7 % do número total da população humana de cada município para se ter uma ideia de quantos caninos serão alvo da campanha, e a meta é atingir 80% dessa aferição. Para os felinos, a bibliografia existente, além de rarefeita, é bastante confusa no estabelecimento de parâmetros, mas a tendência das Secretarias de Saúde municipais é estipular meta de 20% da população canina. Há controvérsias, claro. De qualquer forma, tudo se trata de estimativa, que além de ter chance de estar sub ou superestimada, não leva em consideração – e aí está o problemão – os animais que vivem no extradomicílio: os comunitários e os errantes.

A grande maioria dos animais levados às campanhas vive em residências. E os que “moram” nas ruas?

Essa informação é relevante, ainda mais se tivermos em mente que em 2010, por conta de falha ocorrida num dos lotes da vacina adquirida pelo MS, muitos animais tiveram reações adversas, alguns indo a óbito, o que representou um grave prejuízo à estratégia em curso no Estado do Rio de Janeiro. O número de animais vacinados, que já vinha sofrendo leve decréscimo no transcorrer dos anos em algumas cidades, sofreu queda brusca em 2010. No município do Rio de Janeiro, por exemplo, não houve vacinação em 2011, e, nos anos subsequentes, a Vigilância Sanitária não conseguiu mais alcançar o patamar que atingiu em 2009, qual seja, 564.342 animais vacinados. Mas aí, salvo engano, ainda enfocamos os animais que têm moradia, mas deixamos de fora os demais, que não constam nos planejamentos.

A mídia tem informado, por conta de alertas que o próprio Poder Público emite, que vários morcegos infectados com o vírus rábico têm sido encontrados caídos em logradouros da região metropolitana, notadamente na capital do Estado, que possui vigilância pujante e que sobressai nesse quesito ante vários municípios. Se a cobertura vacinal vai mal das pernas em relação aos nossos pets, o que dizer do pobre “vira-lata” que não possui quem o conduza aos postos durante as campanhas? Lembremos o recente caso de uma cidadã que morreu com essa doença fatal, numa cidade do Nordeste, após ser ferida em abril deste ano por um gato contaminado com raiva silvestre. O perigo está no ar.

Fiz essa imagem  quando ainda cursava o bacharelado em Medicina Veterinária na UFRRJ. Trata-se de um exemplar de Desmodus rotundus, uma das três espécies hematófagas existentes no Brasil. Engana-se quem pensa que apenas os morcegos-vampiros podem transmitir Raiva às pessoas e aos animais.

Sobre Mauro Blanco

Sou carioca da gema, morador da Zona Oeste, tricolor, bacharel e mestre em Medicina Veterinária pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e servidor concursado da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro. Já atuei como Oficial Temporário no Exército Brasileiro, na Companhia Municipal de Limpeza Urbana (como Subgerente na Gerência de Vetores), na Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (como Coordenador de Controle de Vetores, Coordenador de Vigilância Ambiental em Saúde e Diretor do Centro de Vigilância e Fiscalização Sanitária em Zoonoses Paulo Dacorso Filho), e na Secretaria Especial de Promoção e Defesa dos Animais, instância pertencente à Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, como Subsecretário.
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15 respostas para Desafios das cidades no controle da Raiva Animal

  1. Lucienilda disse:

    Excelente artigo, parabéns!!!

  2. Solange Maria disse:

    Perfeito!!! Parabéns pelo tema e sua excelente abordagem.

  3. MARCELO CELESTINO DOS SANTOS disse:

    Gostei. Foi esclarecedor, vou verificar com os vizinhos sobre alguns amigos que vivem serelepes pela rua.

  4. Edinaldo de Lima disse:

    Muito bom Mauro!!!

  5. Assis Fernandes disse:

    Boa tarde nobre amigo!!! Através do meu amigo Edinaldo de Lima tô tendo a oportunidades de conhecer suas idéias… parabéns!!!!!!! precisamos de pessoas com ideais ….

  6. John disse:

    Belo desafio, Mauro. Excelente. Sou amigo do amigo Edinaldo.

  7. Fabiana disse:

    Excelente trabalho de utilidade pública.

  8. Ana Paula Oliveira Flores disse:

    Excelente artigo, o ideal seria que o poder público disponibilizasse para esses animais sem um tutor a vacina e a cirurgia de castração.

  9. Sandra Regina Neto disse:

    Olá amigo, estive dia 04/10 na Prefeitura e na hora que estava saindo cerca de 16:00, naquela área entre o Prédio da Prefeitura e o da previrio vi um pequeno morcego caído no chão, tentava levantar voo mas não conseguia, é claro que vários curiosos estavam até a tirar foto do bichinho, sei que o correto seria capturar o animal e leva-lo a zoonose, infelizmente não tinha equipamento e ainda ia de trem para casa, o máximo que pude fazer foi orientar as pessoas que provavelmente aquele animal estava doente, pois não cairia assim do nada , porem as pessoas tinham essa ideia “não tem perigo “, o máximo que pude fazer foi com cuidado e uma folha de papel ir empurrando o animalzinho com cuidado para que nem eu nem ele nos machucássemos até que ele conseguiu voar um pouco saindo assim do caminho e indo para uma arvore na parte do jardim, tudo isso é claro sobre os olhos de um gato que estava louco para pega-lo, e que depois ficou me olhando como dizendo “e agora cade o meu brinquedo”. não sei como esta funcionando agora a Zoonose mas acredito que seria muito bom uma visita na área da prefeitura para recolher e analisar algumas especies. Só tem que tomar cuidado para não pegar o morcego maior “Crivella” pois esse sim pode ser perigoso a saúde publica.

    Abraços.

  10. Rosa disse:

    Olá Mauro, tudo bem? Eu tenho estética canina e hospedagem para cães e certa vez numa dessas campanhas, fico ao lado de um profissional da saúde panfletando sobre meu trabalho e observei que o profissional estava alcoolizado e na hora que ele vacinava os animais, a seringa saía do corpo do animal, perdendo toda a validade.

    • Mauro Blanco disse:

      Cara Rosa, que situação lamentável. Sugiro que o fato seja denunciado à Prefeitura. Aqui no Rio, por exemplo, poderia ser feita uma ligação para o telefone 1746. Caso não queira se identificar, faça a denúncia de forma anônima. Temos de combater esse tipo de absurdo, em prol dos animais e da Saúde Pública. Obrigado pelo seu comentário.

  11. Marco Veras disse:

    Abrangente e esclarecedor. Parabéns, mestre.

  12. Alexandre Santos Ditta disse:

    Como Sanitarista e responsável pelo Serviço de Vigilância em Saúde da XI Região Administrativa da cidade do Rio de Janeiro, que compreende os bairros entre a Penha e Jardim América, observo diariamente um grande número de animais transitando pelas ruas, principalmente cães, alguns portando coleiras, indicativo que possui um ‘tutor responsável” (será tão responsável assim???). O péssimo hábito de abrir os portões de suas casas para que seus “tutelados” possam passear, fazer suas necessidades, quem sabe comer alguma coisa nas ruas (já que muitos “tutores” parecem não oferecer ração aos seus animais), além da insensibilidade característica de “humanos” em abandonar animais principalmente em determinadas épocas do ano, como meros produtos, são condutas desprezíveis. Discordo de alguns que dizem que é preciso divulgar a chamada “posse responsável” de animais. Simplesmente porque muitos que adotam esta postura, desconhecem que tenha esta denominação, entretanto praticando-a por amor e zelo aos seus animais de estimação.
    As campanhas de vacinação antirrábica de animais certamente possuem algumas falhas, principalmente em relação aos vacinadores e divulgação. Mas, parcela importante da população carioca (e mesmo brasileira) será a grande responsável pela detonação de uma “bomba-relógio” iminente: CASOS DE RAIVA HUMANA. E aí, os animais serão os “culpados”, assim como o são no caso da leishmaniose visceral, doença causada pelos péssimos hábitos dos humanos que favorecem a proliferação de mosquitos, mas que de acordo com o Ministério da Saúde são as “vítimas” (humanos).
    Sem esquecer da esporotricose, doença de característica epidêmica aqui na Região Metropolitana do Estado do RJ.
    Enfim, a individualidade e insensibilidade humana tem condenado ao abandono e à morte os melhores seres que habitam o planeta: OS ANIMAIS!!!!

  13. Madalena disse:

    Gosto muito dos esclarecimentos feitos Aqui!

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