A carroça na frente das leis

A tração animal remonta a pré-história, entre 4 a 7 mil anos a.C., inicialmente utilizada para atividades voltadas à agricultura. Registros de que a China utilizava o arado puxado por bois, por exemplo, têm cerca de 2.800 anos. Claro que, com o avanço da tecnologia e o aparecimento das máquinas, a tração animal no campo, notadamente nas propriedades de alta produção, é uma prática extinta, embora os pequenos agricultores ainda a utilizem devido ao baixo custo e à menor exigência de equipamento mecânico.

E nas cidades? Os animais ajudavam em viagens, carregando pertences das pessoas, ou levando o próprio indivíduo montado, permitindo que ele tivesse um deslocamento menos cansativo e mais rápido, principalmente em trajetos de longa distância. Referências bibliográficas trazem a informação de que por volta de 3.500 a.C., com a roda, apareceram as primeiras carroças. Os ancestrais dos transportes coletivos foram movidos a partir da força motriz dos animais, sendo um parâmetro para o desenvolvimento dos veículos atuais. Em Paris, por volta do ano de 1661, o transporte público via carruagens foi introduzido por Blaise Pascal. Em Nova York, em 1832, surgiram as primeiras linhas de bonde a tração animal. No Brasil, o primeiro bonde puxado por animais surge em 1859, sendo substituído pelo movido a vapor e pelo elétrico em 1862 e 1892, respectivamente.

Mas a tração animal, preponderantemente feita por cavalos, sobrevive nas cidades mesmo no Século XXI, inclusive nas grandes metrópoles brasileiras, na maioria das situações em atividades de transporte de carga e remoção de entulho. Trata-se de um problema altamente complexo, envolvendo aspectos socioeconômicos e de defesa dos animais, que muitas das vezes sofrem maus-tratos, não têm assistência veterinária ou alimentação condizente com o gasto de energia rotineiro, isso sem falar dos abusos em termos de peso suportado e jornada de trabalho. O ideal para todos esses casos seria substituir os animais por máquinas, como feito ano passado na Ilha de Paquetá, onde os carroceiros que lá trabalhavam receberam da municipalidade, via termo de comodato, carros elétricos para o transporte de turistas naquela ilha, que possui 1,2 quilômetro quadrado de área. E o que dizer de todo o Estado do Rio de Janeiro, com seus 92 municípios?

Quando não há intenção de resolver um problema (ou não se conhece ele minimamente), criam-se leis para inglês ver, com fins notoriamente eleitoreiros, que podem até ser palatáveis para o povão, mas que não possuem qualquer aplicação prática pois sequer regulamentadas são. Um aterrorizante exemplo disso é a Lei Estadual nº 7194, de 07/01/2016. Ela brotou na ALERJ, e, sem combinar com os russos, com a Segurança Pública e nem com qualquer município, que é o território onde os carroceiros atuam, foi sancionada com pompa e circunstância pelo Governador. Inicialmente trouxe aquele furor, com a mídia anunciando em festa que “a tração animal estava com os dias contados” por aqui, e que “o RJ foi o primeiro Estado do Brasil a proibir carroças puxadas por animais”… depois, mais uma decepção, tal qual a do jatinho de 2,51 milhões/ano.

Resumindo a tal lei, que inclusive foi mal interpretada por muita gente, haja visto sua confusa redação, temos mais ou menos o seguinte: Qualquer cidadão pode, quando constatar maus-tratos a animais de tração, comunicar aos órgãos competentes(???) e de proteção(???) para que sejam recolhidos(???). Protetores de boa-fé acionaram policiais e guardas municipais, quando observaram algum ato de crueldade em cavalos puxando carroças, e viram que esses agentes públicos, além de não possuírem notícia alguma sobre a 7194, também não procuraram se inteirar a respeito e/ou tomar qualquer providência. Mesmo que os animais fossem removidos, é fundamental saber que a maior parte das cidades não dispõe de espaço físico – cocheiras –  para manter-lhes em condições dignas. As raras que possuem não podem, devido a questões que envolvem estrutura das repartições e recursos financeiros, absorver intensa demanda de animais de grande porte, já que não se pode perder de vista, também, o repasto, medicamentos e os demais cuidados necessários. Seria o caos!

Devido à infraestrutura precária e à escassez de pessoal gabaritado para atuar nesse tipo de empreitada, incluindo médicos veterinários, atrevo-me a dizer que pouquíssimas prefeituras elaboraram ao menos um cadastro municipal para saber quantos carroceiros existem em suas cidades, sua localização, o número de cavalos utilizados e as condições de saúde desses animais, que muitas das vezes se deslocam de forma quase “invisível” pelas ruas, como os sem-teto.

Concluímos que há, decerto, legislação que deveria proteger esses animais e educar a população, mas nem os próprios Executivo e Legislativo prestam-lhe a mais insignificante importância. Nesse caso, como de outras tantas vezes no Poder Público, a carroça veio na frente.

Sobre Mauro Blanco

Sou carioca da gema, morador da Zona Oeste, tricolor, bacharel e mestre em Medicina Veterinária pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e servidor concursado da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro. Já atuei como Oficial Temporário no Exército Brasileiro, na Companhia Municipal de Limpeza Urbana (como Subgerente na Gerência de Vetores), na Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (como Coordenador de Controle de Vetores, Coordenador de Vigilância Ambiental em Saúde e Diretor do Centro de Vigilância e Fiscalização Sanitária em Zoonoses Paulo Dacorso Filho), e na Secretaria Especial de Promoção e Defesa dos Animais, instância pertencente à Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, como Subsecretário.
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5 respostas para A carroça na frente das leis

  1. Maria Cristina Sampaio disse:

    É uma pena que esses animais não tenham um tratamento digno, por falta de vontade política.

  2. Roberto Guimarães disse:

    No Brasil existem lei que nós não sabemos se ela vai pegar. Dá para entender isso!? Parece ser o caso dessa 7194.

  3. Alexandre Santos Ditta disse:

    Eis os pré-históricos “carroceiros”, vistos como coitados pela sociedade…coitados uma ova!!!! São pessoas acomodadas, que exploram estes animais…são criminosos, pois cometem CRIMES, tão impunes quantos os diversos crimes que vivenciamos todos os dias.
    Não contrato e nem dou nada a estes “coitados”…quero que se explodam, pois apenas ocupam lugar no mundo.

  4. Luis Carvalho Cordeiro Dias disse:

    Para que isso deixasse de existir, seria preciso em primeiro lugar que os municípios dessem conta do recolhimento do seu lixo e entulho, diariamente. Em segundo e não menos importante, que pusessem em prática o que só existe nos papéis, como parece ser o caso da 7194.

  5. Ana Paula Oliveira Flores disse:

    Vejo um ativismo maravilhoso e crescente disposto a lutar pelas causas animais mas também vejo uma certa ignorância e desleixo da parte da sociedade e principalmente da classe política. Moro em uma cidade interiorana que tem passado situação horrendas envolvendo maus tratos e abandono de animais, e o número de cavalos em situação degradante presos em carroças crescem cada vez mais. O poder público ignora completamente, uma pobre protetora por pouco não foi agredida ao pedir que um senhor pelo menos deixasse o pobre do animal amarrado na sombra e não debaixo do sol escaldante. Muito triste. Sinto que o ser humano evolui mas ao mesmo tempo se torna primitivo. Parabéns pelo blog, foi indicado pelo meu tio Naldo, e ele tinha razão, o blog é ótimo!

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